Publicado em: 11/08/2020 23:17:12
Interpretações equivocadas de conceitos jurídicos causam mal-estar entre site de notícias e o Governo de Rondônia
por DIOGO MARQUES
Uma decisão judicial sobre o caso do desaparecimento do corpo do bebê Nicolas Naitz, em maio de 2014, se transformou, recentemente, em uma disputa de versões entre o site de notícia Rondoniadinamica e a Superintendência Estadual de Comunicação, Secom. No dia 28 de julho, o Rondoniadinamica publicou a notícia que tinha como chamada “Após venda do Regina Pacis por R$ 12 mi, Estado de Rondônia, se condenado definitivamente, terá que arcar com indenização do caso Nicolas Naitz”. O Governo do Estado está envolvido por ter sido o responsável pela transferência da criança para lá, já que havia um convênio entre o hospital e Secretaria de Estado de Saúde.
A Secom rebateu a informação apresentada pelo Rondoniadinamica utilizando uma ferramenta recém-criada, a Secom Verifica, cuja finalidade, segundo a descrição constante no perfil oficial do governo no Instagram, é “reduzir os efeitos das informações falsas esclarecendo com as informações necessárias e verdadeiras”. No dia 20 de julho, a Secom Verifica afirmou que a notícia publicada no dia 16 pelo site Rondoniadinamica era “falsa”.
Além disso, a publicação (que foi feita no perfil oficial do Governo do Estado no Instagram) tratava de explicar o fato através da perspectiva adotada pelo governo.Ainda no dia 20, às 11h48, o Rondoniadinamica publicou um artigo que afirmava que o Governador Marcos Rocha havia criado uma “ferramenta enganosa de verificação de notícias”: “O governador Coronel Marcos Rocha, sem partido, inventou uma maneira criativa e institucional a fim de dar eco às suas investidas contra a imprensa. Ele tem usado a Superintendência Estadual de Comunicação (Secom/RO) para imprimir a chancela de ‘falso’ aos conteúdos que desagradam a gestão, dando a impressão de agir como agência independente de verificação dos dados veiculados pela imprensa regional. Não é. A ferramenta, no caso, é tão enganosa quanto muitas das declarações que Rocha vem apresentando desde 2018”.
Rondoniadinamica.com | Acessado em 28 de julho de 2020, às 15h45
Perfil Oficial do Governo do Estado de Rondônia no Instagram
Com duas versões circulando, ARUANA entrou em ação para verificar quais são os fatos por trás dessas narrativas.
#Checamos
Por certo trata-se de um caso que envolve uma série de fatores, começando pelo desaparecimento do corpo do bebê, passando pela responsabilização compartilhada entre o Regina Pacis e o Governo de Rondônia, e alcançando a recente compra do hospital pelo Governo Estadual para ampliar a capacidade de atendimento da Saúde Pública a pessoas infectadas pelo novo coronavírus.
Com o objetivo de elucidar as informações contrastantes que permeiam este novo litígio entre o governo estadual e a imprensa, tivemos acesso ao contrato de compra e venda, que especifica os termos do negócio entre Estado de Rondônia e o Centro Materno-Infantil Regina Pacis, e ouvimos a professora doutora Rosalina Nantes, Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica, do Departamento Acadêmico de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
Antes de irmos direto ao ponto, vamos resumir o que representa a “verificação de fatos”, atividade que alicerça toda a ação de ARUANA. A Pública, agência de jornalismo investigativo, define o fact-checking como “um confrontamento de histórias com dados, pesquisas e registros. É uma forma de qualificar o debate público por meio da apuração jornalística. De checar qual é o grau de verdade das informações”. Na realidade, é a atividade fundadora do jornalismo: apurar. E apurar bem! As agências de checagem têm se espalhado e se tornado fundamentais para combater as fake news, devido ao modo crescente com que informações tem circulado com velocidade e superficialidade. Uma boa checagem é isenta de interesses e busca, acima de tudo, os fatos, aquilo que realmente aconteceu.
Desde o início das suas atividades até o dia do fechamento desta checagem – em 11 de agosto – a Secom Verifica confrontou três notícias veiculadas em sites de conteúdo jornalístico do estado, a última é esta que ora analisamos, em 20 de julho. Em todas essas ocasiões, resultou em um “falso” (classificar suas verificações é praxe das agências de checagem, que criam uma espécie de selo para indicar informações que, de acordo com a apuração, apresentam algum dado equivocado, seja de maneira voluntária ou não). No dia 31 de julho, a Secom Verifica mudou um pouco a abordagem, deixando de classificar a notícia, porém ainda fazendo contrapontos aos conteúdos jornalísticos que, segundo o julgamento do governo, continham informações imprecisas. O fato é que uma dessas notícias é a que envolve o caso do desaparecimento do bebê Nicolas em 2014, e aumentou o atrito já existente entre o Governador Marcos Rocha e a imprensa rondoniense em geral. O site Rondoniadinamica usou a perspectiva de uma possível consequência da decisão do juiz de Direito Edenir Sebastião Albuquerque da Rosa, da 2ª Vara da Fazenda Pública de Porto Velho, a favor de Marciele Naitz, mãe do bebê Nicolas, que desapareceu após ser atendido no Centro Materno-Infantil Regina Pacis. O magistrado deferiu o pedido de congelamento de valores feito pelos advogados de Maciele. Isso significa que o Estado deve depositar, em conta judicial, os valores referentes à indenização à família de Nicolas. O pagamento à família de Nicolas somente não foi feito por que ainda cabe recursos, e a decisão pode ser diferente nas próximas instâncias. Ocorre que o Regina Pacis foi vendido para o Governo de Rondônia e, com isso, os advogados de Marciele pediram que R$ 232 mil do valor total a ser pago pelo governo ao hospital – que chega a R$ 12 milhões – fossem bloqueados para garantir o pagamento da indenização.
Quais são os fatos, afinal?
Na decisão judicial emitida pelo juiz Edenir da Rosa consta que no dia 21 de maio de 2014, Marciele Naitz, residente em Cujubim, entrou em trabalho de parto e foi encaminhada para o Hospital de Base Doutor Ary Pinheiro (HB), em Porto Velho. No entanto, devido ao aumento das contrações, precisou ser atendida em Candeias do Jamari, onde deu à luz o pequeno Nicolas. O médico responsável recomendou cuidados especiais com o bebê, que foi encaminhado para o Hospital Infantil Cosme e Damião, da rede pública estadual. Contudo, pela insuficiência de equipamentos, o recém-nascido foi levado para o Centro Materno Infantil Regina Pacis.
Ainda de acordo com a decisão judicial, no dia seguinte foi declarado o óbito do bebê. Envolto em um pano, ele foi levado de volta para o Hospital de Base, onde o corpo seria conservado. Depois disso não se sabe ao certo o que aconteceu com o corpo de Nicolas. A família alega negligência durante o translado da criança, cuja realização não observou procedimentos de identificação desde o protocolo de saída da maternidade, passando pela entrada no HB e a sua guarda no necrotério. No dia 23, o agente funerário encarregado pelo transporte do corpo não o encontrou. Por fim, em sua decisão o juiz aponta que “a violação do dever de guarda do cadáver do recém-nascido, acabou por gerar direito a indenização, tendo em vista que provocou em seus familiares dor profunda com a descoberta da ausência do corpo, a frustrar o sepultamento de ente querido, além de ensejar violação do direito à dignidade da pessoa morta”.
A partir das ações e omissões das partes envolvidas e da relação de causa e efeito que resultou no desaparecimento do bebê, a defesa de Marciele Naitz pediu a condenação solidária, em que as partes envolvidas possuem obrigação comum para o pagamento de indenização. Tanto o Governo do Estado como o Regina Pacis foram condenados por danos morais e dividem a responsabilidade pelo pagamento da indenização.
O fato novo
Com a venda do Centro Materno-Infantil Regina Pacis para o Estado de Rondônia, os advogados da família Naitz resolveram pedir o referido bloqueio dos valores que o Governo devia à maternidade. Uma vez que o juiz acatou o pedido, na prática os valores da indenização ficarão depositados em uma conta judicial até que se decida em definitivo sobre o caso, pois ainda cabe recurso. A partir dessa decisão, a família de Nícolas não precisaria esperar pelo pagamento em uma fila de credores do Estado, que paga suas dívidas em ordem cronológica, através dos chamados precatórios.
Assim, o Governo Estadual deve depositar em conta judicial parte do pagamento que seria direcionado ao CMI Regina Pacis. Esse valor pertence aos cofres da maternidade, mas permanece bloqueado até que o caso seja definitivamente concluído. Quando isso ocorrer, a família Naitz poderá receber a quantia devida e corrigida. Fundamental destacar que, juridicamente, o arresto – ou seja, apreensão – não causa prejuízo aos condenados, uma vez que os rumos do processo ainda podem mudar, com a consequente anulação ou diminuição da condenação, tampouco efetiva o pagamento para as vítimas, mas assegura o recebimento após o trânsito em julgado, ou seja, a decisão definitiva que não cabe mais recursos.
A confusão
O Rondoniadinamica abordou a solidariedade da dívida do processo judicial, cuja condenação cria uma obrigação comum às duas partes, de acordo com o Artigo 264 do Código Civil. Aqui há um equívoco, pois a matéria considera que a dívida comum seria paga integralmente pelos cofres do Estado de Rondônia, uma vez que é quem realiza o depósito em conta judicial. Em outras palavras, a aquisição do CMI Regina Pacis resultaria na compra da sua dívida, como parte integrante do mesmo processo.
Já a Secom tratou da solidariedade na sucessão dos débitos, regida pelo Art 1.146, também do Código Civil. A verificação leva em consideração que o Estado não pode exercer função empresarial em se tratando do serviço de saúde, constitucionalmente garantido a todos. No entanto, a condenação solidária com a maternidade, requerida e parte interessada na venda do prédio, instalações e equipamentos, torna o Estado obrigado a reparar o prejuízo ante o processo. Trata-se de uma obrigação que o Estado já tinha com a família de Nicolas por força da decisão da Justiça, e não de algo que passa a dever somente depois da compra do hospital.
Conclusão
Deste modo, tanto o site noticioso Rondoniadinamica como a Secom cometeram equívocos ao abordarem de modo seletivo os fatos. Por um lado há a indicação de que haveria total responsabilidade do Governo de Rondônia no pagamento da indenização à família do pequeno Nicolas; por outro o apontamento de que esse fato não recairia exclusivamente sobre os cofres públicos. O fato é que cada uma das partes condenadas, o Governo de Rondônia e a empresa responsável pelo Regina Pacis, será responsável por pagar também uma parte da indenização devida solidariamente. A novidade agora é que o pagamento será realizado mediante depósito em conta judicial, sendo efetivamente executado após a sentença definitiva. Para isso será usado parte dos recursos que seriam utilizados na aquisição das instalações do atual Hospital de Campanha, e futura unidade de saúde estadual.
Antes de concluir, é prudente esclarecer que, neste caso concreto, o erro na interpretação jurídica, voluntário ou involuntário, causa maior prejuízo para a sociedade do que para o veículo de comunicação ou para o próprio Estado. Assim, em meio a uma evidente disputa de narrativas, o cidadão fica envolto por informações que deveriam possuir íntima ligação com a apuração. É exatamente nesse ponto que surge a desinformação como elemento que devia dos fatos. Em que pese a complexidade de entender e abordar um assunto que exige capacitação especial como o Direito, não se pode banalizar e tampouco negligenciar a produção da informação deixando de lado seus critérios mais caros ou, ainda, atuar seletividade sobre aquilo que se pretende abordar, com o risco de se afastar do foco principal dessa equação: a verdade.
Fonte: ARUANA